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segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

As praxes, o cérebro e a linguagem

A morte recente de seis jovens no Meco reacendeu a polémica em torno das praxes. Estremam-se as posições, discute-se mais com a fúria das paixões do que com a racionalidade dos argumentos, o que não surpreende já que esta matéria, como a maioria das que enchem os jornais, é do plano emotivo e não do racional. Radica em convicções profundas, em necessidades básicas dos mamíferos: pertencer a um grupo, submeter os mais novos, ensinar-lhes pelo recurso à força quem manda, qual o seu lugar na hierarquia.
Diz a ciência que temos três cérebros, o reptiliano, o mamífero (na imagem, sistema límbico), o neocórtice. Ora o cérebro mamífero, onde se situam as convicções profundas, é cego, é surdo a argumentos, como bem sabe quem já discutiu com um adepto de um clube de futebol ou um crente fervoroso. Os defensores das praxes, como os dos clubes de futebol, das antigas ou das novas religiões, não se deixarão persuadir pelos argumentos contrários, antes, com o neocórtice, procurarão argumentos socialmente válidos, justificações nobres e altruístas para as respectivas práticas, esgrimindo com as palavras — onde alguém de fora vê humilhação eles dirão integração...
Palavras, leva-as o vento. As palavras, as frases — a linguagem humana — são forma imperfeita de representação daquilo que se nos afigura ser a realidade em que vivemos. E somos criaturas maliciosas. Forjamos argumentos para defender o indefensável, o absurdo, o mal. Já li apologias da excisão feminina, da escravatura, do infanticídio, da tirania, da exploração do homem pelo homem, da livre posse de armas de fogo, dos touros de morte, agora das praxes... Não se pense que, tomado por desonestidade intelectual, misturo assuntos com graus de gravidade muito diferentes: todas eles são instanciações da barbárie que constantemente, por todo o lado, ameaça a civilização. Na Síria ou no Mali, na República Centro-Africana ou na aldeia da Índia em que o conselho de anciãos — os defensores da tradição — condena uma jovem a violação colectiva. Não importa onde: como escreveu Agustina, "em toda a parte há sete cores e sete ventos, e o homem é só um" (1). Insisto: é a barbárie que nos ameaça, em todos os tempos, em todos os lugares, por mais que os requintes da civilização a ocultem momentaneamente dos nossos olhos.
O ser humano não nasce bom, ao contrário do que sustentava Rousseau, antes parece sonhar constantemente com oportunidades para exercer o mal sobre os seus semelhantes com malvadez que as brutas feras dificilmente conseguem imitar — e elas têm a atenuante de agirem por instinto e lutarem por algo vital: comida, território, sexo. Portanto, é ao Estado, enquanto garante dos valores fundamentais da civilização, que cabe agir com firmeza, não tolerando outros estados no seu território, nem outros direitos para além do da República. Tanto os alunos como as instituições de ensino superior devem ser responsabilizados — estas, na pessoa dos seus dirigentes, civil e criminalmente, sempre que cúmplices em todo e qualquer acto que ofenda os Direitos Humanos. Devem ser obrigadas a entender, pelo Estado que as financia, que as aprova, que a sua função primordial não é produzir diplomas manhosos, licenciar políticos, promover festanças, antes contribuir para a criação de um escol livre, insubmisso, participativo, com fome de saber, que tanta falta faz ao nosso país. Ou fechar. 

Imagem: Carl Sagan, Os Dragões do Éden, Círculo de Leitores, p. 65
(1) A Sibila, p.37

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Herdanças

Herdamos as casas e as terras, os escassos oiros e os trastes abundantes. Os retratos, as fotografias, os papéis. O mau feitio, a apetência pela solidão e pelo silêncio, o gosto pela leitura e pela escrita, a paixão pelo trabalho, pela vida ocupada, cansativa. Os tiques, os ditos, os provérbios e as frases feitas:
-- Não herdamos só os bens, herdamos também os males, dizia a minha mãe, quando, ao avizinhar os oitenta, as doenças a começaram a rondar. 
Soube ontem de outra herança sua: tensão ocular elevada. A mesma que, à minha mãe, provocou glaucoma, depois cegueira de um olho e só não do outro porque, entretanto, morreu:
-- Em Julho acaba tudo!
A responsável pelo lar interpretava risonha o dito como vaticínio senil do fim do Mundo. Não, esclareci. A minha mãe, simplesmente, antecipava o seu futuro, sabedora de que na nossa família "Julho é ladrão".
Heranças...

domingo, 19 de janeiro de 2014

Uma boleia atribulada

(Pelos meus dezoito anos (foto de baixo) viajei muito à boleia. Num Verão, corri o Algarve, história que fica para outra ocasião. Acumulei experiências, ouvi histórias, conheci pessoas. Muitos anos depois, passei algumas à narrativa. Uma delas é a que se segue, e situei-a nas curvas de Cós, na subida para a Santa Rita (foto de cima, do mesmo rolo da outra), um dos lugares mais bonitos da minha terra. Vale a pena a visita, sobretudo se incluir também o Mosteiro de Cós, o castelo de Porto de Mós — e os Mosteiros da Batalha e de Alcobaça, estes certamente já conhecidos de todos.)

Na viagem de regresso, estoirado, todo o corpo suspirando por descanso, adormecerá tão profundamente na camioneta que não fará o transbordo em Leiria e voltará novamente para trás... A uns cinco ou seis quilómetros, desperta-o o rádio, em berraria estridente, que condutor e revisor julgam-se sós no autocarro; atarantado vai ter com eles e pergunta se ainda falta muito para chegarem... 
— Já chegámos e já voltámos. Ainda estivemos uns dez minutos na garagem, responde o condutor. Acrescenta o revisor, em tom de justificação: 
— Olhei bem, e o autocarro estava vazio!
Desculpa-se: vinha a dormir, deitado no banco, lá atrás. 
— E agora?, pergunta preocupado, vendo que o autocarro ruge e devora estrada, motorista e revisor desejosos de chegar a casa, sem passageiros que protestem contra os tombos nas curvas ou que gritem assustados com o excesso de velocidade, o rádio sempre berrando tão alto que o João mal se consegue fazer ouvir.
— Ou volta connosco para Pombal, ou sai aqui e vai à boleia. 
— A esta hora, quem parará? 
Mas não tem outra solução e é isso que faz, com tanto azar que o deixam junto a um cemitério, raio de lugar, raio de hora, como chegará a casa, a uns bons trinta quilómetros? Meia hora depois, avista uns faróis, pede insistentemente boleia, o carro afrouxa, chiam os pneus com a brusquidão da travagem, ainda tenta explicar-se, mas interrompe-o voz apressada: — Entre! 
É médico e já devia estar há horas no hospital de Alcobaça, atrasou-o outro parto que correu mal, imagina rindo a fúria da parturiente que o aguarda gritando com dores, as imprecações da parteira, uma e outra supondo-o no conforto de cama de amante ou em farra bem bebida — se é homem há que esperar o pior, dir-lhes-á a sabedoria feminina. Não está incomodado, insultos e pragas aliviam o sofrimento de uma e a aflição da outra, e talvez entretanto a criança nasça sem a sua ajuda, poupando-lhe o trabalho de a pôr cá fora. É também aflito que o João se retesa e segura ao que pode, enquanto o doutor, divertido, troça dos seus receios, estranhos em quem pede boleia à porta do cemitério à meia-noite: parara convencido de que fosse alma penada que quisesse fugir de lugar tão macabro... O João, desesperadamente agarrado à porta para evitar cair em cima do doutor nas curvas, para não ser projectado nas travagens nem bater com a nuca nas acelerações, que, embora o veículo tenha já cinto de segurança não sabe como o pôr nem se atreveria a fazê-lo, ofendendo o condutor, aproveita uma recta para se explicar: tinha ido visitar a namorada, adormecera na camioneta e perdera a ligação... O médico ri, imaginando os motivos. Depois, sério, vendo a cara inocente do rapaz, dá conselhos, os quais, como sempre sucede com todos nós, só serão tomados, se o forem, tarde de mais. Diz-lhe que o comportamento feminino é frequentemente imprevisível, porque homens e mulheres pensam e reagem de diferentes maneiras, dão diferente importância às coisas... O João ouve-o, embora a atenção se concentre na estrada, como ele próprio gostaria que o médico também fizesse, olhando para o caminho em vez de o olhar nos olhos quando fala, bom seria também que não tirasse as mãos do volante para gesticular... Vendo que o pendura está mais preocupado com a sua condução “agressiva”, como a caracteriza, do que com os conselhos que prodigaliza, lembra-lhe que ele próprio trava quando entender necessário, não precisa o João de o fazer, nem de se inclinar nas curvas, que não vão de mota... Agora as mulheres, insiste, talvez por as considerar especialidade sua, pela profissão e pela importância que lhes dá fora dela, as mulheres podem ser, e são frequentemente, um problema, porque os homens as não compreendem nem são ensinados a fazê-lo. 
— Por exemplo, há mulheres que no período mudam por completo de comportamento, tornando-se agressivas, más, embirrantes, entendendo que por elas passarem mal os companheiros se devem desfazer em atenções, quando muitas vezes eles nem sequer sabem do sofrimento que as aflige — mas se gostassem realmente delas, deviam adivinhá-lo, sem que fosse preciso explicar-lhes, pensam elas. 
— Olhe, continua, conheci casos de casais com óptimo relacionamento que acabaram por se separar por causa desta incompreensão, elas ofendidas com a falta de solidariedade para com os tormentos delas, tão zangadas ficavam que acabada a menstruação os continuavam a privar da ração ou, se acaso entretanto faziam as pazes, entretanto começava novo período... Um círculo vicioso, está a ver, não é?
Mas o que o João via era a morte diante dos olhos: chiavam pneus, os faróis devassavam a noite, árvores e muros corriam loucamente direito ao carro e desviavam-se no último momento, o cheiro da borracha queimada penetrava novamente no interior do veículo... A dada altura, uma nuvem de centelhas chispou quando a parede de uma casa se não arredou, mas o médico nem sequer afrouxou: 
— Deixe lá, é só chapa riscada, o seguro paga a pintura. Onde é que você mora? 
E insistiu em o deixar em casa, para terror do João, ao imaginar aquela condução louca pelas curvas de Cós acima. Tinha razão em se assustar, que o médico parecia querer antecipar o lema que o povo defendeu nos anos noventa, sem conseguir convencer o Presidente da Câmara: Vamos fazer das curvas uma recta! Por várias vezes o carro teve pelo menos uma roda no precipício, chegou a entrar pelo atalho e após saltos violentos, apercebendo-se de que a o caminho não era por ali, acelerou em marcha atrás, enquanto os cabelos do João se punham em pé ao ver a velocidade a que recuavam sem que fosse possível descortinar na escuridão os limites do abismo; na Curva da Segunda o automóvel derrapou tanto que quase fez inversão de marcha: 
— Isto sim, são curvas que dão luta! Hei-de cá voltar! 
Subiam já em estrada melhor. 
— Olhe, tenho uns colegas com a mania dos ralis, vou desafiá-los para uma corridinha até cá acima.
— Moro aqui, senhor doutor, atreveu-se o João, ainda distante de casa, receoso de que o bólide entrasse pela sua rua adentro, raspando paredes, alvoroçando cães, apavorando moradores. — Muito obrigado pela boleia, sr. dr.!
— Não tem de quê. Olhe, tome o meu cartão, pode precisar se a sua namorada engravidar...
— Já está, descaiu-se o João. 
— Vê-se que você é dos que não perdem tempo!
Um Amor Inventado (ebook, Leya Online)

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

A epopeia dos malteses*

Esta medalha recorda-me a aventura do meu pai, que há quase cinquenta anos emigrou para a Holanda, com a típica mala de cartão,
— Devia comprar uma mala melhor...
— Serve bem. Quando chegar, ponho-a no lixo.
Por bens a roupa do corpo e algumas mudas, nenhum agasalho apropriado para os invernos da Batávia,
— Lá compro o que fizer falta!
Acima de tudo, forte vontade de trabalhar e uma determinação hoje inconcebível:
— Fico até se me acabar o dinheiro ou arranjar trabalho. Depois, que me ponham na fronteira...
Chegou após dias de comboio por essa Europa que desconhecia — tinha, apenas, a terceira classe — e descobriu que o contrato de trabalho era falso. De tanto calcorrear as ruas de Amesterdão em busca de trabalho feriu-se-lhe um pé, queria uma farmácia —  e o guia e intérprete, apenas interessado em o sugar até ao último tostão, dizia não haver.
— Os maiores ladrões que por lá encontrei foram os portugueses!
Mas também havia gatunos de outras nacionalidades. O primeiro patrão, num restaurante, não lhe pagou. O companheiro de aventura desistiu passado pouco tempo. Mal por mal, antes a pobreza da aldeia, o conforto da pátria.
Com o dinheiro a acabar, soube de vagas na KLM, a companhia holandesa de aviação. Concorreu. Esperou, já sem dinheiro. Entrou. E teve de esperar um mês inteiro pelo salário.
— Não roubei nem pedi esmola!
Nobre povo, nação valente, imortal
 porque, como as enguias, dominamos a arte ancestral da sobrevência
Lá, na fria Holanda, era neste clube, a cuja direcção chegou a pertencer, que entre outros emigrantes mitigava as saudades da pátria madrasta.

*A epopeia dos malteses é o título de um poema de Mário Beirão que  ser lido, por exemplo, aqui.

domingo, 12 de janeiro de 2014

O último moicano

Ninguém. Nem perto, nem longe, nas colinas distantes. Nem sequer chilreiam passarinhos. O único ruído é o da água que canta pelas regueiras, depois se espraia, encharca o chão, me prende as botas à terra, coladas com quilos de lama. Não é difícil imaginar, como na infância, que sou o único habitante do planeta.
Começo a poda dos pessegueiros, já a quererem abrolhar. Sinal de que o Inverno não vai suficientemente frio. Na encosta, o Sol aquece-me, o suor escorre testa abaixo, sujando os óculos -- os primeiros suores do ano, e só me não ponho em tronco nu por medo dos mosquitos que se chegaram, pressentindo refeição engordada pelas comezainas de Natal e passagem de ano.
Avança lentamente a labuta. A exigir técnica, arte, intuição sobretudo. Tal como a escrita. E, para ambas, tesoura afiada, serrote volta-não-volta.
O Sol esconde-se por detrás da minha Salgueira, é tempo de regressar. À noite, nem ligo a televisão para me não irritar. Sentado à lareira, sozinho, no silêncio aldeão, volto a sentir-me longe deste mundo e dos seus funerais de circo, das suas guerras de alecrim e mangerona, do este diz que aquele disse, das intrigas dos jornalistas, quantas vezes a falarem apenas para encher espaço televisivo, da praga dos comentadores.
Contemplo quase hipnotizado as chamas  dançantes, volto atrás no tempo, a um tempo que não vivi, revejo os meus avós paternos naquele mesmo canto, os cinco filhos a aquecerem mãos e pés ao fogo, costas geladas pelas correntes de ar, antes de correrem para as enxergas frias e tiritarem noite fora, estômagos sempre necessitados... E inevitavelmente ocorrem-me os versos de Jacques Brel (Jaurès):
Estavam gastos aos quinze anos
Acabados ao começar
Os doze meses chamavam-se Dezembro
Que vida tiveram os nossos avós
Entre o absinto e as missas cantadas
Eram velhos antes de o serem

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Invernias de antigamente

Nem mesmo turvados pelo álcool conseguem imaginar esses tempos que um dia virão e que poucos deles conhecerão, tempos em que a aldeia terá telefones, água canalizada, esgotos, estradas e caminhos alcatroados. Não haverá então fome em Portugal, mas outros problemas surgirão, fazendo talvez os seus netos e bisnetos desejarem ter vivido no tempo dos avós, em que éramos, disse-se depois, pobrezinhos, mas honrados e felizes. É sabido, ninguém está bem com o bem que tem. Fiquemos, portanto, naquele Inverno terrível, como poucos terá havido antes ou depois, desde que os Montes são habitados.
Chuva e vento, vento, chuva e frio. Gemia água a terra, rebentaram as nascentes, os regatos cresceram até serem novamente rios, submergiram as pontes, matando mesmo a filha do Mouco. De manhã, atravessara com outras mulheres o rio de Cós, que no Verão é apenas um humilde fio de água, levando o jantar ao homem, empregado na padaria, as outras seguindo para a Castanheira, com o comer para os homens, que laboravam num lagar de azeite. Demorou-se, ajudando-o a carregar as braças de pinheiro ainda verdes com que aquecia o forno, mal protegidas da chuva numa arribana próxima, e no regresso encontrou a ponte já submersa pela inundação. As companheiras recearam atravessar a enchente, mas, ou afoita ou em fezes pela criança de dois anos que deixara sozinha fechada em casa, certamente a chorar desalmadamente há horas, acordando só e sentindo-se talvez abandonada, aventurou-se. Quando já estava na outra margem, afundou-se subitamente numa cova oculta na água barrenta e, apesar de não ter perdido o pé, o ar contido nas roupas levantou-a e a enxurrada arrastou-a sem que ninguém lhe pudesse valer; só no dia seguinte o corpo foi encontrado, numa várzea do Valado.
E um dia, inevitáveis como o Inverno que a todos atormentava, apareceram os pexins. Há meses que não podiam pescar, a fome apertava. E apertava-se a garganta dos camponeses ao verem aqueles homens valentes, que não receavam mar e temporais, pedindo esmola por amor de Deus. Os cavadores, também eles impedidos pelo mau tempo de ganhar o sustento, comoviam-se e cada um dava o que podia: um punhado de batatas miúdas, das mesmas que a mulher cozia para os porcos, uma tira de toucinho, uma ou outra maçã ou passas de uva, figos secos, uma fatia de broa e, sempre, um copo de água-pé ou um rijo mata-bicho, aquecendo o corpo e queimando as tristezas, que, bem o sabemos, nem dão de comer nem pagam dívidas.
Então, abrigados nas adegas, ouviam os pescadores horas e horas a fio enquanto fora a chuva batia nas paredes, jorrava dos beirados, corria pelas ruas, fazia transbordar as regueiras, transformando tudo num mar de água. As conversas corriam soturnas como o tempo, recordando os entes queridos levados pelo mar na longínqua Terra Nova, na costa de Peniche, às vezes até junto à Nazaré, mesmo à vista das famílias. E partiam, as ceroulas de flanela arregaçadas pelas canelas, os pés descalços, por poças e atalhos, mendigando pelas aldeias que atravessavam, guardando nos sacos de serapilheira que carregavam às costas a pobre dádiva dos pobres, a quem também escasseava o sustento para si próprios e para os seus; partiam, levando com que mitigar momentaneamente a fome à família enquanto os homens da terra permaneciam nas adegas e arribanas ou iam para a taberna beber fiado.
Como pregoeiro do mau tempo, entoando na gaita-de-beiços a triste melodia do inverno, chegou o amola-tesouras, tentando atrair freguesas com o mesmo assobio com que na Primavera se oferecia para capar os porcos, os mesmos alforges na bicicleta, de onde agora extraía um esmeril para afiar facas e tesouras, alicate e arame fino para consertar as varetas de chapéus de chuva. Também para o galego os tempos estavam maus, calcorreando estradas alagadas e caminhos de lama, a bicicleta à mão, sempre debaixo de chuva inclemente, para ganhar um cruzado aqui, outro ali.
Chegou o cesteiro, instalando-se ora numa adega ora noutra, e habilidosamente entrelaçava vergas fazendo cestos onde as camponesas transportariam ovos ou fruta, poceiros para as uvas na vindima, poceiras para a fruta que venderiam nas praças de Alcobaça ou de Pataias, poceirões onde os burros carregariam o esterco para as hortas quando o tempo levantasse. Ao contrário da formiga, trabalhava de Inverno, mas só receberia mais tarde, talvez apenas no final do Outono: — Pago-te quando vender um casco de vinho..., ambos sabendo que o mais difícil é receber, seja a jorna ganha seja o vinho vendido.

Entre Cós e Alpedriz

domingo, 5 de janeiro de 2014

Canis Major

Anda o Mundo conturbado, sempre atormentado por cataclismos, guerras e crises económicas, o país angustia-se, deprime-se, discute, toda a gente preocupada com a Euribor, o Benfica e a bancarrota iminente. Só eu me alheio e, em vez de fazer contas à vida, peregrinar de banco em banco na renegociação das dívidas, agitar semanalmente lenço branco pelos estádios, me manifestar, juntar-me ao coro que entoa o "Está na hora / de o governo ir embora...", atormento-me com outras ralações, que aos mais apenas despertam sorrisos de comiseração: já é outra vez Natal e ainda há pouco era Verão os dias, as semanas, os meses, as estações e os próprios anos passam sem que os consiga afrouxar um pouco, o prazer, quando o há, tem já travo amargo, que o Inverno se aproxima inexoravelmente...
Como o Cão, farejador que busca Sentido para o que É enquanto segue Órion, o amo, pelo firmamento, por entre poeiras, planetas, estrelas, constelações e mitos, assim sou eu, outro que busca uma resposta que permita, senão resolver o puzzle da vida e dos seus mistérios, pelo menos encaixar uma qualquer peça neste quebra-cabeças; como me poderia então comprazer com as coisas fúteis, aceitar viver um dia, uma hora que fosse, reduzindo o meu destino a um abaixo-assinado, a uma reivindicação, a um protesto, tomando o transitório por perene como as estrelas, repetitivo como a Noite, cíclico como as Estações, cumulativo como o Tempo, definitivo como a Morte?
Não se incomodem comigo, ignorem-me, vão sem mim renegociar os vossos créditos, xingar os árbitros, exigir a demissão do governo; porém, se um de vós, num qualquer dia em que acorde mal disposto, indignado com a ironia da Vida, que nos mostra a Beleza e se compraz em a destruir, nos dá Compreensão para mais sofremos com o fim dos outros e antecipadamente com o nosso, e tiver vontade e disposição então que folheie este livro, nem que seja para logo o pôr de lado com desprezo, porque pouco recreia, a ninguém esclarece, a nada responde.

As Plêiades, inédito

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Todos príncipes

Andaba o rei Bamba a labrar no xeu campo...
Caía a chuva torrencial, pelas janelas embaciadas avistavam-se lameiros nos acessos ao Pavilhão Novo. O professor Lindley Cintra prosseguia a leitura da lenda do Rei Vamba ou Rei Wamba, que recolhera de pobre camponesa das Beiras aquando da pesquisa para o seu Atlas Linguístico da Península Ibérica. Assim tinham de ser as fontes: analfabetos, mais de sessenta e cinco anos, com os dentes da frente para que os esses ápico-alveolares não pudessem ser atribuídos à sua falta.
E eu via distinto o rei lavrador, pernas nuas, pés descalços, uma mão na rabiça, outra na vara com o aguilhão, a gritar incentivos aos bois Ah, Galante! Força, Moreno!
Isto é que era monarquia: a merecer o pão com o suor do rosto, sem vergonha de sujar as unhas na terra em vez de parasitar na Corte, esquiar nas estâncias alpinas, ou veranear nas praias quentes da França republicana, a fugir dos paparazzi, ansiosos para encher com fotos de flirts e pequenos escândalos as  revistas cor-de-rosa que nos salões de cabeleireira entretêm as mulheres, lhes dão matéria para fabricar sonhos, sobretudo às desiludidas com as imperfeições masculinas — tanto sapo beijado e nenhum metamorfoseou em belo príncipe!
A proclamação da República não extinguiu a realeza. Multiplicou-a. Democratizou-a. O que escasseia em marqueses, duques, condes e viscondes sobeja em príncipes e princesas. No café, correm histéricas as crianças, guincham desalmadamente, jogam à bola? A Suas Altezas Reais tudo se tolera. Não querem ir à escola? Seus desejos são ordens. Exigem dormir todas as noites com a mamã? Meu Príncipe! Minha Princesa! O Mundo será como quiseres, tua vontade a minha vontade, a nossa vontade, que apenas cá estamos, todos nós, para te servir!

Longe, longe, a uns trinta e tal anos de distância, distraio-me a ver moça de saltos altos que corre para a paragem de autocarro junto à faculdade, evita poças e lama, o vendaval revira-lhe o guarda-chuva, a chuva fustiga-a, ensopa-lhe os longos cabelos, depois perco-a de vista e amodorrado escuto as histórias do Mestre, encanto-me com a monarquia visigótica, nobres de carne, osso e trabalho: Andaba o Rei Bamba a labrar no xeu campo...

Álvaro, Álvaro, como sinto teus versos, como os faço meus!
Toda a gente que eu conheço (...),
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...(...)
Ó príncipes, meus irmãos, 
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?